31/10/2025
Erros Sensoriais e Descompasso Sensorial
Porque é que o cérebro parece, por vezes, "desligado" — e como trazê-lo de volta ao funcionamento normal
Quando os doentes me dizem: "Sinto que algo está errado no meu próprio corpo", estão a descrever a experiência de um erro sensorial. Quando acrescentam: "e o mundo não corresponde ao que sinto", trata-se de uma discrepância sensorial. Não se trata de defeitos de carácter ou de queixas vagas; são fenómenos mensuráveis de um cérebro preditivo que tenta manter um corpo complexo em equilíbrio num mundo agitado.
A seguir, vamos analisar o signif**ado destes termos, a ciência por detrás deles, como se desenvolvem, o que corre mal em diferentes condições e — mais importante — o que podemos fazer a esse respeito.
O que é um “Erro Sensorial”?
Um erro sensorial é a diferença entre o que o seu cérebro espera sentir e o que o corpo realmente regista. Pense no cérebro como um mecanismo de previsão: prevê o próximo milésimo de segundo de visão, equilíbrio, tato, som e sinais internos. Quando a entrada real se afasta desta previsão, a diferença é um erro. O cérebro usa este erro para atualizar o seu modelo de si no mundo.
Num sistema saudável, os pequenos erros são normais e úteis; refinam o movimento, a postura e a perceção.
Num sistema desregulado, os erros são demasiado grandes, demasiado frequentes ou demasiado ambíguos, pelo que o cérebro não consegue reduzi-los de forma eficiente. Fadiga, tonturas, dor, ansiedade e “névoa mental” surgem, normalmente, de seguida.
O que é uma “Incompatibilidade Sensorial”?
Uma incompatibilidade sensorial ocorre quando dois (ou mais) fluxos sensoriais discordam sobre o mesmo evento. Os seus olhos dizem que o ambiente está parado, mas o seu sistema vestibular diz que se está a mover (navio de cruzeiro, headset de realidade virtual). Ou as suas articulações dizem que está a inclinar-se enquanto a sua visão insiste que está direito. Esta discrepância obriga o cérebro a escolher, reponderar ou fundir informações contraditórias. Se ele não consegue reconciliá-las rapidamente, sente-se desorientado, enjoado, irreal ou inseguro.
A Investigação, em Linguagem Simples
A neurociência moderna define o cérebro como um órgão preditivo e bayesiano: minimiza as surpresas comparando as previsões com os dados recebidos (erro de previsão) e reponderando as sensações de acordo com a sua precisão (confiança). Diversas linhas de investigação clássicas tornam isto concreto:
Integração multissensorial (colículo superior, córtex parietal posterior, junção temporoparietal): o cérebro funde a informação visual, auditiva, táctil, vestibular e propriocetiva quando esta concorda e separa-a quando entra em conflito.
Paradigmas de ilusão (Mão de Borracha, McGurk, conflito visual-vestibular): as discrepâncias controladas demonstram a facilidade com que o cérebro pode ser persuadido a adoptar um modelo corporal ou do mundo impreciso quando um canal é sobrecarregado.
Modelos internos do cerebelo: o cerebelo prevê as consequências sensoriais do movimento; erros grandes e persistentes levam à recalibração (como na adaptação prismática).
Reponderação vestíbulo-visual: após lesão vestibular, a recuperação bem-sucedida correlaciona-se com a reponderação flexível em direção à visão e proprioceção, seguida pela reintegração gradual das pistas vestibulares.
Interocepção e ínsula: a discrepância entre o estado corporal e a sua previsão amplif**a a ansiedade, a dor e a disautonomia.
Codif**ação preditiva na dor, enxaqueca e perturbações funcionais: quando a ameaça ou dor esperada é elevada e a precisão sensorial é baixa, o cérebro pode "explicar" a entrada ambígua como dor, tontura ou fadiga.
Desenvolvimento: Como os Sistemas Aprendem a Comunicar
Desde a infância que o cérebro se está a calibrar:
Primeiros meses: Os reflexos primitivos desaparecem à medida que a visão, a entrada vestibular e a propriocepção aprendem a alinhar-se. O cerebelo e o tronco cerebral constroem mapas temporais; o córtex parietal constrói o esquema corporal.
Primeira infância – infância: Janelas de oportunidade para os movimentos oculares, postura, marcha e coordenação óculo-manual. Os fluxos sensoriais são podados, sincronizados e recebem "pesos".
Adolescência: A integração refina-se sob carga — desporto, leitura, stress social, ecrãs, veículos — testando a flexibilidade de reponderação.
Idade adulta: A integração é robusta, mas plástica; lesões, doenças ou sobrecarga podem desajustar o sistema. Com treino, pode ser reajustado.
O que corre mal?
Erro de canal único: Um sensor está ruidoso (por exemplo, proprioceção do pescoço após uma lesão cervical). O cérebro diminui o peso deste sensor ou f**a preso a ele, levando a mapas distorcidos. Incompatibilidade multicanal: Dois ou mais sistemas discordam (por exemplo, movimento visual + vestibular estático). Se o cérebro não consegue reponderar de forma flexível, os sintomas persistem e generalizam-se.
O que acontece no cérebro durante os erros e incompatibilidades?
Cerebelo: calcula os erros de previsão de movimento e recalibra os modelos internos.
Núcleos vestibulares do tronco cerebral: resolvem conflitos visuais-vestibulares; projetam-se para centros autónomos (náuseas, frequência cardíaca).
Córtex parietal posterior e junção temporoparietal (JTP): fundem a informação sobre a perceção do corpo no espaço; incompatibilidades aqui são sentidas como inclinação, deriva ou despersonalização.
Ínsula e cíngulo anterior: rastreiam o erro interoceptivo; se amplif**ado, a experiência manifesta-se como ansiedade, palpitações e desregulação da respiração.
Redes pré-frontais: estabelecem expectativas; elevada ameaça/previsão pode "explicar" informação ambígua como dor ou tonturas.
Gânglios da base: ajustam o ganho de movimento; A instabilidade na perceção do peso corporal é sentida como início e paragem abruptas, sobrecarga ou bradicinesia.
Centros autónomos (NTS, hipotálamo): propagam esta discrepância, provocando náuseas, suores e tonturas.
Sistemas Sensoriais Envolvidos
Visão: acuidade visual, alinhamento ocular, vergência, perseguição visual, sacadas, fluxo ótico.
Vestibular: canais semicirculares (rotação), otólitos (inclinação/translação), perceção da gravidade.
Propriocepção: fusos musculares, mecanorrecetores articulares (especialmente na coluna cervical e nos pés).
Somatossensação: tacto ligeiro, vibração, dor, temperatura.
Audição: pistas espaciais, perceção temporal, intensidade (relacionadas com o equilíbrio e a atenção).
Interoceção: batimentos cardíacos, respiração, intestino, temperatura, estados hormonais.
Olfato/Gustação: contexto e acoplamento autónomo.
Cópia Eferente Motora: o que o cérebro enviou versus o que percebeu que aconteceu.
Combinações Comuns de Erros e Inconsistências (Exemplos)
Visual-Vestibular: corredores de supermercado, scroll, realidade virtual → tonturas, náuseas, confusão mental.
Propriocepção Cervical-Vestibular: lesão do pescoço + equilíbrio → inclinação, oscilação, dores de cabeça.
Visão-Propriocepção: má coordenação ocular + instabilidade nos pés → marcha desajeitada, fadiga ao ler.
Interocepção-Exterocepção: palpitações em ambiente silencioso → ansiedade, desrealização.
Motor-Sensorial (Eferência-Aferência): intenção versus sensação → ataxia, atraso, correções semelhantes a tremores.
Perceção Temporal Auditivo-Visual: ambientes ruidosos → sobrecarga, desencadeadores de enxaqueca.
Termo/Nocepção-Propriocepção: disfunção das fibras finas → sensação de queimadura ao toque ligeiro.
Condições que envolvem frequentemente erros/desfasamentos sensoriais
Perturbações pós-concussão e pós-universitárias (incluindo PPPD)
Enxaqueca (especialmente sensibilidade ao movimento visual)
Lesão cervical em chicote e vertigem cervicogénica
Disfunção da visão binocular, insuficiência de convergência
Enjoo, cinetose (enjoo cibernético)
Distúrbios neurológicos funcionais
Dor crónica, SDRC (Síndrome de Dor Regional Complexa), fibromialgia
Perturbação do espectro do autismo e diferenças no processamento sensorial
PHDA (Perturbação de Débarquement) e perturbação do desenvolvimento da coordenação
Disautonomia/POTS (desfasamento interoceptivo)
Ansiedade, despersonalização/desrealização
Neuropatias (fibras finas), desaferentação periférica
Síndromes parkinsonianas e cerebelosas (défices de recalibração)
Sintomas típicos relatados pelos doentes
“O chão parece um trampolim.”
“Os supermercados dão-me enjoo.”
“A minha cabeça está pesada; o meu corpo está leve.” “Estou aqui, mas não estou.”
Visão turva ou intermitente com movimentos da cabeça
Calor, ardor ou frio interpretados erradamente como dor
Fadiga, confusão mental, dificuldade de concentração
Ansiedade que surge com os sinais do corpo
Como os erros sensoriais se tornam persistentes
A perturbação inicial (lesão, doença, stress, sobrecarga) aumenta o erro.
As estratégias de proteção (evitação, contração, dependência visual) reduzem a exposição, mas congelam a ponderação desadaptativa.
A ameaça preditiva aumenta; o cérebro atribui uma elevada precisão à previsão e uma baixa precisão aos novos dados.
Generalização: os gatilhos propagam-se — viagens de carro → lojas → ecrãs → ambientes sociais.
O descondicionamento e a deriva autonómica amplif**am os sintomas para estímulos cada vez mais pequenos.
Avaliação: Identif**ando a Discrepância
Histórico de gatilhos (fluxo ótico, movimentos da cabeça, padrões complexos, calor/frio, esforço cardiovascular)
Te**es de movimento ocular (perseguição visual, sacadas, reflexo vestíbulo-ocular, estabilidade da fixação, vergência)
Equilíbrio e marcha em diferentes condições (olhos abertos/fechados, superfícies complacentes, movimento da cabeça)
Erro de posicionamento da articulação cervical (alvo laser, precisão de relocalização)
Acuidade visual dinâmica, impulso cefálico, sensibilidade optocinética
Tarefas interocetivas (respiração ritmada, monitorização da frequência cardíaca)
Carga cognitiva com o movimento (custo da dupla tarefa)
Te**es de reponderação sensorial (qual o canal dominante? qual o subutilizado?)
Tratamento: Como Reajustamos o Sistema
Princípios
Especificidade: treinar a discrepância exata que provoca os sintomas, na dose correta.
Exposição gradual: desafio suficiente para criar erros corrigíveis, mas não o suficiente para causar sobrecarga.
Reponderação: reduzir temporariamente um canal excessivamente dominante e amplif**ar o subutilizado, reintegrando-os de seguida.
Contexto e estado: a regulação autonómica (respiração, ritmo, sono) melhora a precisão dos sinais.
Ferramentas e Exemplos
Vestibular-Visual
Estabilização do olhar (VOR x1/x2) progredindo para fundos complexos.
Exposição optocinética com parâmetros controlados.
Movimentos de cabeça durante a marcha; seguida, adicionar alvos visuais e realizar tarefas duplas.
Dosagem gradual do fluxo ótico em VR/AR ou em ecrã.
Propriocepção Cervical
Ativação dos músculos flexores/extensores profundos do pescoço; posicionamento da omoplata.
Tarefas de precisão de reposicionamento da cabeça laser. Torção cervical com perseguição suave (conforme tolerado).
Terapias manuais e de movimento para restaurar a aferência articular.
Visão e Oculomotor
Terapia de vergência, acomodação, exercícios de perseguição/sacadas relacionados com a postura.
Trabalho de visão ambiente (consciência periférica) com equilíbrio.
Estratégias com prismas ou oclusão em casos selecionados, com plano de desmame.
Propriocepção e Pés
Exposição à textura dos pés descalços; formação com apoio curto.
Progressões de postura: firme → espuma → estreito → unipodal com movimento da cabeça.
Tarefas locomotoras com superfícies e ritmos variáveis.
Interocepção e Sistema Nervoso
Respiração em frequência ressonante; trabalho de tolerância ao CO₂.
Sustentação isométrica ou cardio ligeiro para titular a sensibilidade do barorreflexo.
Digitalização corporal com movimento (emparelhamento interocepção + exterocepção).
Sincronização Auditivo-Visual
Sincronização com metrónomo; Exercícios de sincronização audiovisual.
Exposição ao campo sonoro com controlo de intensidade e complexidade.
Mapeamento da dor e do corpo.
Imagética motora graduada, discriminação esquerda/direita, terapia com espelho.
Treino de discriminação táctil e contraste de temperatura.
Integração Cognitivo-Motora
Progressão de dupla tarefa (caminhada + recordação; equilíbrio + cálculo).
Alternância de tarefas sob fluxo ótico leve.
Âncoras de Estilo de Vida
Regularidade do sono e higiene da luz (luz do dia de manhã, penumbra à noite).
Estabilidade glicémica e hidratação para reduzir o ruído na interocepção.
Dosagem de força e resistência para melhorar a relação sinal-ruído.
Competências de gestão do stress: ritmo, limites e rituais de recuperação.
Adjuvantes (quando apropriado)
Filtros visuais temporários ou lentes coloridas para sensibilidade ao movimento.
Estimulação vestibular ruidosa ou ressonância estocástica (casos seleccionados).
Adjuvantes de neuromodulação (p. ex., tDCS/TMS) combinados com treino específico.
Suporte farmacológico para enxaqueca, distúrbios vestibulares ou disfunção autonómica grave como parte de um plano coordenado.
Uma Estrutura de Progressão Simples
Estabilize a base: respiração, sono, nutrição, ritmo diário suave.
Mapeie o erro: identifique o gatilho mais pequeno fiável.
Dose a discrepância: 3 a 8 minutos de exposição específ**a, 1 a 2 vezes por dia, sem sobrecarga.
Reajuste e realinhe: priorize os canais subutilizados (por exemplo, reduza os estímulos visuais enquanto carrega o sistema vestibular/propriocetivo) e, em seguida, reintegre a visão.
Aumente a complexidade: adicione tarefas cognitivas, velocidade e ambientes.
Generalizar para a vida: dos exercícios clínicos → casa → comunidade → desporto/trabalho.
Reveja e reajuste: recalibre semanalmente os limites e as metas.
Como se sente quando funciona
Os gatilhos tornam-se pequenos "sinalizações" em vez de ondas gigantes.
A sua postura e movimentos oculares parecem fluidos, menos "fixos".
Pode fazer compras, andar de carro, ler e navegar na internet durante mais tempo com menos esforço.
A ansiedade diminui porque os sinais do seu corpo voltam a fazer sentido.
O mundo parece estável; sente-se presente nele.
Considerações finais
Os erros e incompatibilidades sensoriais não são o inimigo; são mensagens. Num sistema resiliente, estas mensagens orientam a adaptação. Num sistema sensibilizado, tornam-se repetitivas e impactantes. O caminho a seguir não é silenciar os sentidos, mas ensiná-los a funcionar em harmonia novamente — um sinal, uma respiração, um desafio cuidadosamente doseado de cada vez.
https://drtraster.substack.com/p/sensory-errors-and-sensory-mismatch?fbclid=IwY2xjawNxZ3tleHRuA2FlbQIxMABicmlkETFaN09vd0djU3JRZjA4TGR5AR51kW17OfxyGCqZUcKnABPH3qYkC3wYCcbfrmviCWAFDHh891fV7LEDljTfaw_aem__Gz9xybxULy1Usmwvs83Ug
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