31/03/2022
O peso destruidor do rótulo cultural
Não de forma tão perigosa como no presente, vamos assistindo a este peso destruidor, o do rótulo cultural. Um peso que se revela inibidor, quer de uma verdadeira apreciação, quer de uma verdadeira consciência crítica – algo que de outro modo poderia até surgir pelas ideias ou por uma qualquer substância ou essência das coisas, mas fica-se pela mera revelação e imposição de estigmas, superficialidades, imprecisões – e ao mesmo tempo desinibidor e incentivador do ataque, da discriminação e da marginalização.
Vejamos isto á luz do que hoje possa estar identificado com a aplicação de um mero rótulo, entre outros, um ser russo, ser americano, ser chinês, ser comunista, ser marxista, ser liberal, ser extremista, ser polícia, militar ou funcionário público, político, cigano, um comediante que com tudo faz piadas ou até mesmo um palhaço que com tudo brinca…, entre tantas outras e intermináveis formas de procurar estereotipar o outro, no fundo ter a necessidade de o classificar como sendo isto ou aquilo e o prejuízo discriminatório que tudo isso traz em termos da fraca capacidade de análise específica das coisas, do discernimento e da predisposição para dirigir a atenção para aquilo que verdadeiramente importa, o pensamento, o discurso, a ação e em tudo ou naquilo em que tal se traduz.
O humano vive assim, tempos difíceis, onde se contenta com meras frases chavão, em ambientes sociais onde, salvas algumas exceções, se cultiva o reducionismo e a rudimentariedade.
Até à irracional guerra aberta já fomos capazes de regressar, no seio do alegado e proclamado espaço europeu das liberdades, das prosperidades e da autodeterminação dos povos e das culturas.
Altos responsáveis no mundo utilizam o espaço público para se digladiarem na base de um discurso simplista, mas sobretudo agressivo, onde até parece, do ponto de vista da pessoa simples, humilde e pacífica, contudo experiente e habituada a resolver os conflitos da sua existência, que os objetivos do presente são incentivar à entrada num espaço propício ao cenário de colapso coletivo.
Parece que estamos em tempos de falta de paciência e de fraca substância, em que se dá atenção ao acessório, em vez do essencial. Na mera tentativa de, numa lógica de poder e de controlo, tentar a todo o custo aniquilar o que se revela e identifica como distinto, do que não pertence ao grupo - ainda que os pré-juízos que o fundamentam e sustentam - ao grupo - permaneçam por desconstruir e às vezes até por identificar. Mas também um tempo de aniquilação daquele(a) indeterminado(a) que resistindo às implacáveis categorizações, preocupa-se sobretudo em ser e em existir, não como outra coisa qualquer, mas como ser humano, cultural por natureza, mas sem que isso signifique acorrentamento psicossocial. Aquele que tem dificuldade em identificar-se plena e cegamente, de modo a definir-se inteiramente desta ou daquela forma. Mas também daquele ou daquela que, apesar de tudo, permaneça fiel a ele(a) próprio(a), interessado na própria superação das suas vulnerabilidades, mas em constante e preocupada interação, determinando-se em sacudir as cores com que o(a) queiram pintar, sempre em busca, em construção, reflexivo(a) ou conciliador(a) dentro de uma, de umas ou entre todas as partes.
Nos meandros da ciência, da cultura e da história, podemos dar como adquirido um facto: hoje, tal como ontem e certamente como amanhã, existe a dificuldade de sabermos exatamente quem fomos, quem somos e muito menos quem seremos. E se, muito embora, no final das nossas vidas, sobre cada um de nós, a verdade que fique, seja aquela que os “outros” se encarregarem de querer registar, pelo menos que em vida, desejemos e seja possível esperar, que o tempo, o espaço e o universo, constituam os limites do crescimento e do nosso desenvolvimento individual e coletivo, sempre dentro de espaços de diálogo, com tudo e com todos. Num sentido em que a estabilidade e a estanqueidade que se possa insistir em querer ver no outro e classificá-lo de uma determinada forma, se possa diluir e seja passível de ser considerada, no mínimo das suas consequências, tão incomodativa para o outro, quanto, vistas as coisas ao contrário, o possa ser, na verdade, para qualquer um de nós.
Aceitemos de uma vez que as dinâmicas da interação cultural, connosco próprios, com os outros e com o mundo, aquelas que operam em nós transformações de tal ordem, que, revelando-se permanentes e constantes, a cada qual possam fazer pertencer um único e exclusivo processo de desenvolvimento, pessoal, intelectual e de identidade cultural, dentro de um modo único de ser, de existir e de pensar.
Aceitemos que o outro, seja ele quem for… possa estar certo, possa ter razão naquilo que diz, nas ideias que defenda, nos projetos sociais que apresente e não hipotequemos a possibilidade de com ele discutir essa essência da verdade nas coisas, que é um compromisso que a todos nos convoca (independentemente da "cor" e do tipo de “camisola” que se veste ou através da qual se procura identificar alguém).
Deste modo, talvez possamos libertarmo-nos dos rótulos. Será um esforço que valerá a pena. Não nos violentemos nos pontos de partida, nem no meio e muito menos no fim das relações que temos ou possamos ter uns com os outros.
Olhemo-nos como pessoas que somos.
Num grupo de enfermeiros, de médicos ou de polícias, embora uns possam vestir todos bata branca e outros possam fardar de azul, cada ser humano ali presente é único, por toda a experiencia que adquiriu, pelo saber que incorporou, pela sabedoria que possui e pelos traços de carácter e de personalidade que o caracterizam.
Quer se pertença ou não a um grupo, cada qual tem o seu percurso de aprendizagem, e com todo o direito, quer a esse mesmo percurso, quer à possibilidade de poder manifestar a sua diferença, a sua imparidade, muito mais do que a obrigatoriedade de pertencer a qualquer semelhança.
Se houver uma verdade, essa dir-nos-á porventura que todos temos sido, somos e seremos, sempre diferentes, e para vivermos em comunidade, a necessidade passa por partir dessa diferença a uma fase de entendimento, de uns com os outros, encontrando-nos, dialogando articulando, colaborando. E havendo igualdade, que ela se revele vivendo em relação, em empatia, em tolerância, em paz, em harmonia e em amor.
António Loura